Justiça

Sanção à pais por não vacinarem seus filhos é consequência de “endeusamento do Estado”, conselheiros e promotores poderão ser responsabilizados em caso de reação da vacina, dizem especialistas


O Código Civil e especialmente o artigo 14 do ECA têm sido usados por alguns formadores de opinião para dizer que a vacinação já seria obrigatória no Brasil, uma vez que o Ministério da Saúde recomendou a vacinação de crianças de entre 5 e 11 anos. Alguns deles chegam a defender sanções para os pais. No entanto, em sua própria recomendação favorável à vacina, a pasta tornou expresso que a vacinação não é obrigatória , o que invalida de vez esse raciocínio. As informações são do jornal Gazeta do Povo.

Somente se uma lei tornasse obrigatória a vacinação de crianças no Brasil é que o Estado poderia se fundamentar no Código Civil para aplicar sanções aos pais que não vacinassem seus filhos. Nessa hipótese, as sanções poderiam envolver desde pequenas multas até a própria suspensão do poder familiar.

O juiz de direito e professor-pesquisador André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Filosofia do Direito, Epistemologia e Antropologia Filosófica, considera que a hipótese de sancionar os pais por não aceitarem a aplicação de uma vacina experimental em seus filhos é absurda e só pode estar sendo discutida seriamente em um contexto social de “endeusamento do Estado”. “É tudo muito discutível num sentido e no outro, está tudo em aberto, não tem nada solidificado em termos científicos. Em segundo lugar, a pena pela suposta omissão paterna seria completamente desproporcional ao ato omissivo supostamente praticado”, disse em entrevista ao jornal Gazeta do Povo.

Para o especialista, haveria, nessa hipótese, “supressão do princípio da subsidiariedade”. Além de levar em conta o bem comum, explica ele, é necessário respeitar “a primazia dos pais no sagrado direito de educação dos filhos”. “Toda tentativa histórica do estado de suprimir isso dos pais foi frustrada”, ressalta. “O Estado só deve intervir quando as sociedades intermediárias – a família, por exemplo – são incapazes de fazê-lo.”

Escolas particulares podem exigir vacinação, mas questão pode ser judicializada

Especialistas consultados pela Gazeta do Povo afirmam que, nas escolas públicas, o tema da vacinação infantil deve ser tratado como em qualquer espaço público – isto é, os pais de estudantes dessas instituições têm total liberdade para definir se vacinarão ou não seus filhos.

Em escolas particulares, o assunto é mais complexo. Como qualquer empresa privada, elas têm o direito de impor certas restrições alegando o desejo de proteger a saúde daqueles que circulam em seus ambientes. Mas, dependendo do caso, a questão pode ser judicializada.

Gonçalves Fernandes explica que “a escola privada, nesse ponto, tem liberdade de definir quem ela vai matricular ou não, desde que não fira nenhum princípio constitucional do artigo 5º [que trata dos direitos e garantias fundamentais]”. No entanto, segundo ele, a escola precisa dar um tempo razoável aos pais “para fazer essa correção de rumo no meio da viagem” e matricular os filhos em outra instituição.

Se a escola não oferecer um tempo razoável, “isso poderia ser plenamente questionável pelos pais”, afirma ele. A solução, a partir daí, seria a judicialização do caso. “Os pais podem argumentar mostrando que não há evidências científicas de que a negativa da vacinação poderia provocar um efeito imediato no ambiente escolar”, diz.

Quais são as leis que importam na discussão sobre a vacinação infantil

Regina Beatriz Tavares da Silva, advogada, presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões) e pós-doutora em direito da bioética, diz que não há, hoje, nenhuma norma que obrigue que os pais vacinem seus filhos. “É uma decisão dos pais, sem dúvida nenhuma. O que os pais têm de fazer é refletir bem em torno da retomada dos estudos presenciais e das pesquisas técnicas que estão aí disponíveis. É uma reflexão muito voltada ao pai e à mãe, que são os responsáveis diretos pela saúde dos filhos. Cada pai, cada mãe, vai procurar definir aquilo que considera melhor”, diz ela.

Ainda que, essencialmente, a decisão caiba aos pais, há diversas circunstâncias que podem tornar o tema complexo, como a volta às aulas e a exigência da vacinação por parte de instituições de ensino. Para esclarecer essas questões, há algumas leis que precisam ser levadas em conta.

A Constituição trata do tema somente em linhas gerais, ao definir, em seu artigo 229º, que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores” e, em seu artigo 5º, estabelecer os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos – entre os quais estão, por exemplo, a liberdade de consciência e a inviolabilidade da vida privada.

A lei que trata mais especificamente sobre a autoridade dos pais em relação aos filhos é o Código Civil, em seu capítulo sobre o “poder familiar”. Regina Beatriz explica que o poder familiar diz respeito à responsabilidade dos pais de “dirigir a criação dos filhos menores de 18 anos, o que envolve também tratamentos, vacinações e tudo o que for necessário para a formação do filho”. “É muito mais um dever do que um direito. É um feixe de obrigações a cargo dos pais. Não é um poder ilimitado”, explica. “A limitação desse poder é o superior interesse do filho menor”, complementa.

Em seu artigo 1.637, o Código Civil afirma que, se os pais abusarem de sua autoridade, “faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos”, a Justiça ou o Ministério Público podem “adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha”.

Já o artigo 14 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.

Orientação à pais viraliza na internet

Um material com orientações jurídicas para pais que não desejam vacinar seus filhos contra Covid-19 viralizou nas redes sociais. O material informa sobre a não obrigatoriedade da vacina em crianças e sobre o direito de matrícula nas escolas. Ainda que o Ministério da Saúde tenha declarado que a vacina em crianças esteja condicionada à autorização expressa dos pais ou responsáveis, alguns Ministérios Públicos, como o do Ceará e da Paraíba, estão emitindo entendimentos de que a vacina seria obrigatória e que pais que não vacinam poderiam ser acionados juridicamente.

Juristas concordam que as escolas, pelo menos as integrantes da rede pública de ensino, não podem impedir matrículas ou cercear o acesso das crianças à escola. No documento que tem sido divulgado nas redes sociais, é lembrado que, pelo menos até agora, não existe uma lei que obrigue os pais a vacinar uma criança contra a Covid-19 para matrícula na escola.

“Não existe tal obrigação por parte do Programa Nacional de Imunização, nem do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código Civil, nem de qualquer lei aprovada pelo Congresso Nacional. O próprio Ministério da Saúde estabelece que a vacinação contra a Covid não é obrigatória, e a Organização Mundial da Saúde não a recomenda para crianças”, diz o texto.

Mesmo assim, segue o texto, ainda há muita desinformação a respeito, o que pode levar diretores e outros funcionários de escolas a pedirem o comprovante de vacina contra a doença na hora de fazer ou efetivar a matrícula da criança. Nesse caso, a orientação é inicialmente conversar com a diretoria da escola, apresentando uma notificação extrajudicial que explica os motivos pelos quais a vacina não pode ser considerada obrigatória.

O texto ressalta ainda que, de acordo com a Constituição Nacional, ninguém pode ser “obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º) e que o Código Civil, em seu artigo 15, também determina que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Ainda de acordo com a Constituição, “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde (…), à educação (…), além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art 227).

Notificação extrajudicial
Depois de ressaltar a inexistência de lei que sustente qualquer imposição de vacinação compulsória no caso em questão, o documento levanta questionamentos em relação à segurança das vacinas. Um dos pontos mencionados é que a concessão de registro definitivo, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para o uso do produto da Pfizer, na faixa etária de 5 a 11 anos, não impede eventuais risco de morte, lesão grave e outros prejuízos à saúde ainda desconhecidos. A própria fabricante da vacina, lembra o documento, ressaltou que os estudos de uso da vacina no público infantil começaram em março de 2021, com previsão de término somente para 2026, e que desconhece efeitos adversos e colaterais a longo prazo.

“As injeções de substâncias atualmente oferecidas contra a Covid-19 encontram-se em fase de testes para aferir sua segurança e eficácia. Logo, aos pais é dado o direito de submeter ou não seus filhos menores ou incapazes aos mencionados ensaios clínicos, assumindo, livremente, a responsabilidade pelos possíveis efeitos colaterais”, ressalta o documento.

Argumentação válida
Por fim, a orientação diz que se, mesmo após a conversa e apresentação da notificação extra judicial, diretores e escola ainda mantiveram a posição de não efetivar a matrícula da criança na escola, o caminho é o pedido de abertura de um inquérito policial. Isso porque a conduta do diretor da escola pode configurar crime de abuso de autoridade, constrangimento ilegal ou ameaça. Esses crimes ocorreriam pelo constrangimento aos pais que não vacinarem, uma vez que não há lei que exija a vacina; e também pela negação ao acesso à escola, direito fundamental previsto na Constituição.

Para o professor-pesquisador André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Filosofia do Direito, Epistemologia e Antropologia Filosófica, que teve acesso às orientações, o documento é válido e pode ser efetivamente usado pelas famílias que não pretendem vacinar seus filhos contra a Covid-19. “Essas medidas confiram uma defesa sustentável, robusta, e legalmente relevante em favor de pais que, justificativamente e com o amparo da opinião médica do pediatra de seu filho, não pretendam vaciná-los”, diz ele.

É possível responsabilizar judicialmente em caso da criança sofrer dano causado pela vacina?

Para o advogado Vinícius R. C. Manhães, os argumentos usados no material podem ser usados em outras situações que envolvem pais que por algum motivo não querem vacinar seus filhos. Na avaliação dele, promotores de Justiça ou conselheiros tutelares que iniciarem ações para obrigar pais a vacinarem seus filhos contra Covid-19 também podem se tornar alvo de notificação ou ações judiciais de responsabilização civil ou cautelares. Isso poderia ocorrer, esclarece o advogado, em casos de ocorrência de qualquer efeito adverso da vacina que vem há ocorrer á criança vacinada. Outra hipótese é responsabilizar administrativamente, civil e/ou penalmente pela conduta imprudente e ilegalmente imposta pelos promotores ou conselheiros. Aplicação de multas aos pais é outra medida que, na avaliação de Manhães, seria vedada aos promotores do MP ou membros do Conselho Tutelar.

“Não há que se falar em imposição de multas por justamente gerar prejuízo econômico à família e, com isso, por em risco toda sua saúde financeira ou quiçá em perda do poder familiar, uma vez que essa medida extremada geraria mais prejuízo que benefício à criança que ora se pretende proteger”, finaliza o advogado em entrevista à Gazeta do Povo.

 




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