Onda de cancelamentos tem feito o programa “The Joe Rogan Experience” alcançar mais audiência que Fox e CNN
Por Gazeta do Povo
Um internauta baseado nos Estados Unidos que abra sua conta no Spotify – um dos maiores streamings de música do mundo, no páreo com a Apple Music, por exemplo – e dê uma zapeada pelas categorias de conteúdo oferecidas pelo aplicativo, há de esbarrar nas opções esportes, músicas, notícias, política, cultura… e Joe Rogan. O nome não está ali por acaso: trata-se do resultado de um contrato firmado em maio de 2020, com valor de 100 milhões de dólares, prevendo que os episódios do programa do comediante e ex-comentarista de UFC sejam veiculados exclusivamente pela plataforma.
Estima-se que o podcast The Joe Rogan Experience seja baixado cerca de 200 milhões de vezes por mês – quase como se todos os brasileiros ouvissem um episódio – e renda um lucro de pelo menos 30 milhões de dólares por ano, a despeito das inúmeras críticas da parte de ativistas por comentários supostamente “transfóbicos” do apresentador e, principalmente, por sua intrépida militância contra os passaportes de vacinação. Nas palavras do próprio The New York Times, Rogan se tornou “grande demais para ser cancelado”.
Quem é, então, o dono da voz que parece ser uma das mais ouvidas do Ocidente? Praticamente desconhecido do público brasileiro até o boom dos podcasts no país, de meados de 2018, Joe Rogan fez várias incursões pelo mercado do entretenimento americano antes de investir no seu próprio canal. Nascido em Newark, no estado Nova Jersey, em 11 de agosto de 1967, Rogan é filho de um policial a quem descreveria como um pai ausente e propenso à violência. Depois da separação dos pais, mudou-se com a mãe para São Francisco, na Califórnia, onde, com 7 ou 8 anos, performava pequenos truques de mágica para a vizinhança.
Segundo os relatos disponíveis na internet, era emburrado e baixinho, gostava de brigar e de contar piadas. A família logo se mudaria para Gainesville, na Flórida, antes de chegar a Boston. Lá, Rogan daria vazão aos seus dois “talentos”: construiria parte de sua carreira no taekwondo, até entrar no mundo dos stand-ups. Em seguida, mudou-se para Los Angeles e, entre 1995 e 1999, interpretou um personagem homônimo – Joe – no seriado “NewsRadio”. Os anos 2000 acabariam por consagrá-lo como um dos principais comentaristas de UFC no país, o que lhe renderia sua primeira base de fãs cativos. A verve da comédia, contudo, sempre o acompanhou: Rogan se tornou conhecido por adotar uma fórmula de humor voltada para o público masculino, com piadas sobre mulheres burras e atraentes. “O tipo de garota quando você olha fundo nos olhos, vê a parte de trás do crânio”.
Cancelamentos e controvérsias
24 de dezembro de 2009. Na véspera de Natal, na companhia do comediante Brian Radban, Rogan estreava seu canal no YouTube. Uma “conversa entre dois caras na frente do computador falando besteira”. Nascia, assim, o The Joe Rogan Experience. A partir de 2013, quando já contava com um público razoável (alguns episódios batiam um milhão de visualizações), Radban foi substituído pelo produtor Jamie Vernon, que passou a atuar nos bastidores. Dois anos depois, já no formato atual – com convidados semanais – o podcast já era o mais ouvido do país.
Desde então, passaram pela mesa de Joe Rogan – que, recentemente, se mudou da Califórnia para o Texas – ninguém menos do que o físico Neil deGrasse Tyson, o rapper e produtor Kanye West, o pugilista Mike Tyson, o senador democrata Bernie Sanders e o CEO da Tesla, Elon Musk. Veiculada em 2019 e reproduzida mais de 50 milhões de vezes, a primeira participação de Musk no programa é um recorde absoluto: é bastante familiar aos internautas a imagem do todo-poderoso dos negócios experimentando um cigarro de maconha na frente das câmeras. Há um ano, o CEO voltou ao podcast, rendendo mais 24 milhões de visualizações para o canal, com mais de 11,6 milhões de inscritos.
Os números já dão conta de justificar o impacto de Rogan na cultura americana contemporânea. Não demoraria muito para que sua suposta influência política caísse na arena de debate, especialmente porque o podcaster é dessas figuras praticamente impossíveis de se encaixar em um espectro ideológico (o que, provavelmente, é um de seus maiores trunfos e a razão de seu sucesso). Mais de uma vez, Rogan afirmou que é “de esquerda pra cace**”, “quase socialista”, e que apoia pautas como o casamento gay, a renda básica universal e o ensino superior gratuito. Declarou apoio a Sanders e disse desprezar Donald Trump. Ocorre que, já há alguns anos, Rogan é um crítico contumaz não apenas da cultura do cancelamento, mas das pautas identitárias extremas conhecidas como “woke” (“O problema é que você nunca será woke o suficiente”, ele descreveu).
Há que se registrar, contudo, que Rogan não se furta de dar espaço também à direita. Amigo pessoal do apresentador Tucker Carlson, da Fox News, que também já esteve na casa, o podcaster já deu espaço mais de uma vez para o escritor e cineasta Alex Jones, influenciador conhecido por já ter afirmado, por exemplo, que o tiroteio de Sandy Hook, que matou 20 alunos da primeira série em 2012, não aconteceu, entre outras teorias sem fundamento. Rogan também já foi acusado de racismo em 2013, por ter dito no programa que havia entrado no filme “Planeta dos Macacos” ao visitar a África. Anos depois, admitiria ao vivo que a fala foi racista.
Ocorre que, mais do que abraçar, pessoalmente, a causa anti-cancelamento, Rogan também dá espaço para verdadeiros intelectuais e influenciadores liberais, conservadores e progressistas moderados, críticos às loucuras identitárias. O psicólogo canadense Jordan Peterson já esteve mais de uma vez no programa, bem como a neurocientista Debra Soh (“The End of Gender”), a jornalista Abigail Shrier (“Irreversible Damage”), entre outras figuras notórias da área.
Vacinas e passaportes
Seu último “cancelamento”, contudo, não poderia ser por outro motivo: em abril do ano passado, durante o programa, Joe Rogan afirmou acreditar que pessoas jovens e saudáveis não precisariam tomar a vacina contra o coronavírus. O comentário provocou uma enxurrada de críticas e irritou o próprio Anthony Fauci, levando a uma resposta oficial da Casa Branca. Rogan reiterou que não é contra a vacina e afirmou ter tomado o imunizante. Ainda assim, cede espaço para médicos céticos quanto à eficácia da vacina além dos favoráveis ao uso da ivermectina como tratamento precoce. Mais de uma vez, autoridades sanitárias pediram que o Spotify retirasse seus programas do ar – sem sucesso.
O último episódio desta polêmica ocorreu na última quinta-feira, 13 de janeiro, quando Joe Rogan foi confrontado pelo apresentador Joseph Zepps em meio a um debate sobre a relação entre o imunizante da Pfizer e os casos de miocardite em jovens rapazes. Ao vivo, o convidado convenceu Rogan de que pesquisas mostram que o risco de miocardite associado à Covid ainda é maior. Seguiu-se uma troca de mensagens, com outros pesquisadores questionando o material mencionado. Rogan, contudo, viralizou com a frase: “se alguém tinha que me fazer parecer burro no podcast, fico feliz que tenha sido o Zepps”.
Talvez esta seja, afinal, o grande mérito de Rogan – capaz de cobrir eventuais piadas de mau gosto e convidados ruins -: a disponibilidade para conversar de boa vontade, um modelo que se provou atraente e rentável a ponto de inspirar, no Brasil, iniciativas como o Flow Podcast. Figurinha carimbada do The Joe Rogan Experience, o jornalista Glenn Greenwald está entre os que se colocou em defesa do apresentador, especialmente quanto este é criticado por sua oposição ferrenha às medidas autoritárias de uma pandemia que dá claros sinas de arrefecimento. “Ele é constantemente chamado de estúpido e ignorante pela grande mídia e por partes da esquerda. Ele é o oposto de estúpido: ele é independente”, tuitou o jornalista.
Não é de se surpreender que, conforme o próprio Greenwald costuma alertar em suas redes, Rogan tenha se tornado uma pedra no sapato da imprensa por sua indomável popularidade: estatísticas deste mês dão conta de que seu programa é mais ouvido do que a FOX e a CNN. Segundo a reportagem do New York Times, os boatos de que suas controvérsias incomodam o Spotify não se sustentam: com sua liberdade criativa resguardada por contrato, Rogan seguirá desbancando grandes canais e trazendo novas perspectivas para o debate público. É grande demais para ser cancelado.