Lei quer priorizar investigações de homicídios de crianças em SP
Por R7
O silêncio das autoridades públicas castiga Valdira Valadares, de 64 anos, há dois anos. Desde o dia 19 de fevereiro de 2019, quando a neta Hillary Souza Valadares foi assassinada durante uma perseguição policial em Peruíbe, município do litoral de São Paulo, Valdira começou uma saga para encontrar respostas para o homicídio da neta. “Não consegui elaborar o luto até hoje. É um sistema que não me respeita, que é violento comigo. O que chamamos de justiça não acontece”, diz ela, envolta em tristeza e revolta.
Para tentar reduzir o tempo de investigação e a dor dos familiares, parlamentares da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) criaram uma lei para assegurar a prioridade de tramitação das investigações sobre tentativas e homicídios dolosos e culposos que tenham como vítimas crianças e adolescentes. Na prática, o tratamento prioritário dos casos fica previsto em lei, e os inquéritos que tratam de crimes contra a vida dessa faixa etária passam a ser identificados de forma diferenciada.
Hoje, especialistas afirmam que homicídios em geral levam entre um e três anos para ser solucionados. Não há, porém, um índice de resolução de crimes contra a vida específico para essa faixa etária. Pesquisas recentes, como o levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a Unicef, apontam que 35 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no país nos últimos cinco anos. Isso representa uma média de 7 mil por ano, ou ainda 19 crianças e jovens que perdem a vida todos os dias no país.
“Deveria existir prioridade nas investigações de todos os crimes contra crianças e adolescentes, principalmente, relacionados a maus-tratos, lesões corporais, torturas, estupros de vulneráveis e importunações sexuais”, afirma Ariel de Castro Alves, advogado especializado em direitos da criança e do adolescente. Isso porque, segundo ele, os homicídios ocorrem, em geral, após agressões, abusos e torturas. “Já que a maioria desses casos não é investigada, os crimes contra a vida ocorrem mediante a certeza da impunidade dos agressores.”
A existência de uma lei sempre gera a possibilidade de cobrança para que as investigações sejam mais ágeis. As famílias, conselhos tutelares e promotorias poderão cobrar agilidade
Um levantamento realizado pelo Instituto Sou da Paz, em outubro, mostrou que mais da metade dos homicídios no Brasil fica sem resposta. Segundo a pesquisa, o índice de esclarecimento do país é de 44%, mas apenas quatro estados foram classificados com alta eficácia na investigação e responsabilização dos assassinatos. O estado de São Paulo registrou 46% de resolução. A deputada Marina Helou (Rede), uma das coautoras da lei que determina prioridade para crimes contra a vida de crianças e adolescentes, afirma que, nessa faixa etária, há um elevado número de homicídios que não são nem sequer identificados.
“Nosso objetivo principal é que todos os crimes e as tentativas sejam investigados. Desde 2018, o estado de São Paulo reduziu em 32% essas mortes. A meta é que nos próximos três anos essas mortes continuem caindo”, diz ela. A parlamentar afirma ainda que apesar de o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e de a Constituição assegurarem a prioridade da criança e do adolescente, eles não determinam a celeridade das investigações.
Entraves nas investigações
O coordenador do Centro de Apoio Criminal do Ministério Público de São Paulo, Arthur Lemos Júnior, afirma que as investigações que apuram crimes dolosos que terminam em morte já são consideradas uma prioridade por parte do órgão. “Elas são conduzidas com atenção especial, principalmente porque em tais casos as primeiras horas são as mais importantes para a apuração dos fatos”, diz.
Hillary, de 2 anos, morreu durante perseguição policial em Peruíbe. FOTO ARQUIVO PESSOAL
Segundo o promotor, é preciso dar transparência à coleta e armazenamento de evidências. “Encontrar o DNA do agente criminoso ou o esperma em roupas ou nas partes íntimas é fundamental para que essas situações sejam apuradas rapidamente. As primeiras horas são importantíssimas.” Mais do que ser célere, explica Lemos, a investigação deve começar o quanto assim. “Para isso, a polícia deve ir até o local e coletar as primeiras evidências, conversar com pessoas que estão por perto. Muitas vezes, a chance de o agente criminoso ser próximo das vítimas é muito grande.”
Lemos afirma que não é a lentidão das investigações que determina a impunidade, mas a inexistência das provas que dificulta a chegada à autoria. Segundo ele, a maior parte dos homicídios em São Paulo e no país está relacionada aos crimes de tráfico de drogas. “É o carro-chefe por trás de grande parte dos assassinatos.”
Em segundo lugar, os feminicídios. “Nesses casos, porém, o índice de esclarecimento é mais alto porque o agente criminoso se relaciona com a vítima. Já nos casos de tráfico, o índice de resolução é menos em função do domínio das organizações criminosas. As pessoas sentem medo de revelar o que sabem.” O promotor explica ainda que os crimes contra a vida envolvendo crianças e adolescentes têm uma dinâmica semelhante aos feminicídios. “Diante de uma pessoa que tem relacionamento com a vítima são identificados maus-tratos, motivações de ordem sexual e normalmente há responsabilidade criminal.”
O advogado Ariel de Castro Alves acredita que, sem a prioridade para a investigação de todos os crimes contra crianças e adolescentes, a lei estadual terá eficiência. “Sem que existam delegacias especializadas com profissionais qualificados para realizarem escutas protegidas de crianças vítimas ou testemunhas e sem centros de referência que façam acompanhamento social e psicológico com base na Lei Federal 13.431 não se alcançará um resultado promissor”, diz.
Em casos de estupro de vulnerável ou maus-tratos, o advogado explica que é realizado um boletim de ocorrência e, somente após três ou seis meses, a criança é chamada para ser ouvida na delegacia, geralmente nas DDMs (Delegacias de Defesa da Mulher), sobrecarregadas com casos de violência contra a mulher. “O laudo de exames de corpo de delito feito no dia do registro do boletim de ocorrência ou no dia útil seguinte só fica pronto após 30 dias. Geralmente, nesse período as crianças continuam convivendo com os agressores enquanto aguardam o laudo e a escuta”, diz. Casos como esses, explica Alves, deveriam ter prioridade para evitar novos abusos e danos irreparáveis.
Não consegui elaborar o luto até hoje. É um sistema que não me respeita, que é violento comigo. O que chamamos de justiça não acontece
VALDIRA VALADARES, AVÓ DE HILLARY
Para que se verifique se a lei será cumprida, o advogado afirma que algumas mudanças serão necessárias nas delegacias gerais e nas corregedorias de polícia. “A existência de uma lei sempre gera a possibilidade de cobrança para que as investigações sejam mais ágeis. As famílias, conselhos tutelares e promotorias poderão cobrar agilidade”, diz ele. “Mas somente uma tarja ou capa diferente nos inquéritos não resolve. É preciso ter fiscalização da corregedoria da Polícia Civil e estrutura material e de pessoal nas delegacias.”
Com a priorização na resolução de outros crimes contra infância e juventude, segundo ele, seria possível se alcançar um menor número de homicídios contra essa faixa etária. Além disso, é preciso considerar que em muitos casos, as crianças e adolescentes também são testemunhas e precisam ser ouvidas por meio da escuta protegida. “As delegacias não possuem profissionais especializados nem ambientes adequados para isso.”
Segundo a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Sofia Reinach, os crimes envolvendo crianças e adolescentes têm diferentes características a depender da idade da vítima. “Até os 9 anos eles têm maior igualdade de sexo, raça e cor e ocorrem mais dentro das residências”, afirma. “A partir dos 10 anos, esses crimes passam a ocorrer em vias públicas. Quanto maior a faixa etária, maior o percentual de mortes causadas por arma de fogo e de agressores desconhecidos.”
Em ambos os casos, Alves ressalta que se tratam de investigações complexas cujos inquéritos policiais deveriam durar 30 dias com a possibilidade de prorrogação por mais 30. “Os laudos corporais ou necroscópicos deveriam ser providenciados rapidamente pelo IML e a perícia, realizada no local dos fatos logo após o crime. A reconstituição deveria ser feita antes desse período.” São Paulo é o único estado do país sem delegacias especializadas em crimes envolvendo a infância a juventude.
Sem respostas
Na tarde do dia 12 de fevereiro de 2019, o filho e a nora de Valdira Valadares saíram de casa e passaram em um pequeno mercado da cidade de Peruíbe. Após as compras, o casal fazia anotações dentro do veículo quando uma bala perdida acertou a cabeça da filha do casal, Hillary, de dois anos. “O policial que atirou alegou que estava em uma perseguição policial. Mas é uma luta para conseguirmos provar. É um processo muito cansativo”, diz a avó da criança. Após ser atingida, Hillary chegou a ser internada, mas não resistiu aos ferimentos. O inquérito da Polícia Civil fez com que o promotor pedisse o arquivamento do caso, uma vez que, segundo ele, não houve a identificação do suspeito. Um dos jovens perseguidos pela polícia morreu na ação o que impossibilitaria a ação penal.
Deveria existir prioridade nas investigações de todos os crimes contra crianças e adolescentes, principalmente, relacionados a maus-tratos, lesões corporais, torturas, estupros de vulneráveis e importunações sexuais
De acordo com o promotor, caso o disparo que atingiu a menina tivesse sido feito por meio da arma do policial militar, ele teria, então, agido em legítima defesa. Somente após a realização de uma perícia particular, o caso foi reaberto. “Parece que é só mais um caso, mas não dá para ser mais um”, diz Valdira. “Meu filho não tem condições emocionais para esse enfrentamento. Falta responsabilidade dos órgãos públicos.” A avó de Hillary espera que a lei paulista reduza a espera de outras famílias que perderam crianças e adolescentes. “A violência moral que o governo imprime às famílias também é criminosa. Nós, familiares, é que precisamos nos esforçar para provar que houve um crime porque o Estado não tem responsabilidade.
Prevenção antes da punição
A promotora da Infância e da Juventude de Campinas, Andrea Santos Souza, afirma que os crimes sexuais contra crianças e adolescente são os que mais geram boletins de ocorrência. “Este campo envolve toda a rede de proteção da vida do adolescente”, diz. Dessa forma, ela, que também é secretária da Rede de Defesa da Vida do Jovem e do Adolescente, ressalta que é preciso garantir mudanças também na abordagem dos policiais e na formação dos promotores. “Nosso papel é na área protetiva para que não ocorra um evento danoso”, diz ela.
Em casos de crimes sexuais, é necessário acolher a criança e a família. A punição é a última medida. A promotora afirma que, com o retorno às atividades presenciais, houve um aumento de denúncias vindas de escolas e conselhos tutelares. “Há uma demanda reprimida porque os conselhos não podiam ir a campo”, diz. Além disso, houve também um aumento de casos relacionados ao aumento da fome e da carência material.”
Além de leis e punições, a promotora ressalta que é necessário pensar em aspectos educativos, como questões relacionadas a problemas de uso abusivo de álcool e drogas, questões relativas à saúde emocional. “Houve um aumento de casamentos infantis, de adolescentes que com 19 anos passaram a viver com namorados. É preciso pensar no conjunto de consequências que a pandemia trouxe para crianças e adolescentes. Em casos de violência doméstica, é necessário atentar para casos de violência psicológica que não deixam provas. “É necessário acolher a criança e a família. A punição é a última medida”, afirma Andrea.