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Cortar a fala de Trump não foi jornalismo


Vou me permitir discordar outra vez de jornalistas que respeito. Ao contrário deles, achei condenável a decisão tomada pelas redes de televisão americanas ABC, NBC e CBS de interromper a transmissão da fala de Donald Trump, na qual ele disse: “Se contarem os votos legais, vencerei facilmente. Estávamos ganhando tudo e então repentinamente nossos números começaram a ser escondidos.”

Trump está se comportando muito mal, evidentemente, ao dizer que está sendo vítima de uma fraude gigantesca na apuração dos votos. Age como delinquente. Mas, por mais que a sua atitude seja reprovável, ele é presidente dos Estados Unidos e candidato à reeleição. A necessidade de transmitir integralmente o que ele diz não significa ter respeito reverencial ao cargo que ocupa ou à sua condição eleitoral. Significa cumprir com o papel da imprensa de apresentar TODA a verdade aos cidadãos sobre o homem que, afinal de contas, ainda comanda o país e almeja um segundo mandato. Mesmo que a verdade seja de uma grande mentira.

Imagine você se os jornais decidissem não reproduzir a fala de Trump. O nome disso é censura ao direito de o leitor saber o que se passa. Não é diferente com as emissoras que cortaram a fala do presidente dos Estados Unidos e candidato à reeleição — elas praticaram censura ao espectador, para alegadamente evitar a disseminação da fake news de Trump sobre a apuração dos votos. Em nome do quê? Do interesse público. Preferiram substituir a fala com explicações sobre como funciona o sistema de apuração, para neutralizar a mentira.

Uma coisa não substitui a outra. O correto a fazer seria transmitir sem cortes a fala de Trump e depois desconstruir a tapeação, com uma explanação objetiva sobre os fatos. O interesse público teria sido, aí sim, plenamente satisfeito, com a imprensa televisiva cumprindo o seu papel. Não compete a jornalistas legislar se os cidadãos podem assistir ou não à fala de um presidente da República e candidato em momento eleitoral. Eles têm o direito de saber o que diz e como age o sujeito que a maioria colocou na Casa Branca, em 2016 — e que outra maioria está tirando agora.

As redes de televisão americanas atuaram como se fossem redes sociais. Não são. Redes sociais não são imprensa, e pelo fato de milhões de pessoas as tratarem como tal é que vivemos um momento de muita confusão entre verdade e mentira — e que justifica a retirada de postagens enganosas ou a sinalização delas. Um tuíte mentiroso de Trump é diferente de uma fala mentirosa dele na Casa Branca. O primeiro não constitui fato em si, mas a representação de uma mentira; a segunda é fato concreto, mesmo sendo mentira. E transmitir e noticiar fatos concretos, sem manipulação ou cortes censórios, é a função primordial da imprensa.

O que fizeram com fala de Trump foi tão ou mais irresponsável que as lorotas do presidente americano. Trump falou mentiras e jornalistas tentaram apagar o fato. Buscaram sonegá-lo. Agiram como donos da verdade, de maneira paternalista e autoritária, sob as vestes da responsabilidade. Não somos donos da verdade e não temos mandato de ninguém para decidir pelos cidadãos. Quem define o interesse público é principalmente o público, não o subestimemos. Se nos atribuirmos responsabilidades que não são nossas, daremos azo a que venham nos censurar pela divulgação de verdades inconvenientes.

Abriu-se um precedente perigoso.

 

Texto de Mario Sabino de O Antagonista.




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